O velhinho ia adorar aquela peça. Eu até já podia ver um sorriso escapando do seu recato meio acaipirado.
Eu havia procurado bastante, mas foi numa hora inesperada que o disco apareceu.
O bar barulhento inaugurado meses antes bem diante de minha porta trouxera ao meu comércio um novo público. A circulação aumentou, estendi o horário em quase todos os dias e foi numa sexta quase meia-noite que um guri calado chegou com quatro discos velhos e aceitou minha primeira oferta. A joia do negócio foi uma bolacha inacreditável de 45 rpm, trilha sonora de Love letters, filme de ainda antes dos bons tempos, com música de Victor Young.
O velhinho ia adorar, sem dúvida. “Love letters”, a canção principal, nunca havia faltado no estoque, várias versões para cada década decorrida, menos ou mais meladas, menos ou mais espremidas ou esticadas, com voz, sem voz, nostálgicas, amodernadas. Mas ele desejava a primitiva e repelia as genéricas.
Logo na segunda depois do almoço ele entrou pela porta e ficou flertando como sempre com as pilhas de jazz, afagando as mesmas capas de bebop que nunca comprava. No fundo da loja eu estava preso a um guitarrista moço me azucrinando com essas rivalidades paspalhas, me reprovando por ter no catálogo a escola de estilo que ele julgava indigna. O velhinho se achegou para roubar meio gole de meu cafezinho de garrafa e eu o interrompi para mostrar-lhe o disco, em silêncio.
Ele demorou um instante para compreender. Mas, assim que distinguiu as letras da capa, tremeu ligeiramente o pescoço como um gato provocado e exalou um “Ah!” já começando a sorrir.
— Deve custar um rim mais novo que os meus — barganhou de primeira.
— Vamos ver como está o som e depois conversamos.
Ajustei a vitrola para 45 e o braço flutuou até o início da primeira faixa.
— Mas ponha “Love letters” — pediu.
Corrigi o rumo da agulha, que pousou mais adiante, e uma melodia passou a brotar do estouro de chiados.
O guitarrista ainda circulava pelo salão e entraram três clientes que eu não conhecia. Ninguém parou para ouvir mais atentamente aquela orquestração melodramática. Eu baixei meus olhos absortos, deixando a audição governar a consciência.
Quando ergui a cabeça é que notei o líquido claro que escorria por sua face. Desviei polidamente o olhar, como se me retirasse da cena, mas ele próprio, o velho homem, não estava mais lá: o soluço do pranto, os engasgos, os saltos estalados da mandíbula eram apenas as relíquias de um pássaro já distante, um remoçado aventureiro que perseguia as origens, unia as pontas da vida, descobria a última árvore verde, furtava-se às feridas da existência, dançava no mais alto céu, ofegava, assombrava — e arrancava do tempo, como se fosse um pedaço de ouro, o pergaminho em que se inscrevia a epígrafe do mundo ditada pelo próprio Criador.
Muito legal Paulo!
ResponderExcluirFiquei com vontade de saber mais o que aconteceu com o 'velho homem'... rs
Parabéns pela ideia dos historemas!
:)
Obrigado pelo comentário! Se eu descobrir o que aconteceu com ele, te conto. Abraço!
ExcluirTQP, Paulo! Sublime.
ResponderExcluirObrigado! :-)
ExcluirLindo!!!
ResponderExcluirMuito obrigado! :-)
ExcluirLindo, lindo, lindo! Sensível e uma singela dose de comicidade. Com uma imagem arrebatadora no final! Sensibilidade à flor da pele! Parabéns, comandante! Grande abraço
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