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Historema 14

Depois de um dia maravilhoso, como um sábado no Ibirapuera com meu filho Wellington, eu vou para a cama, agradeço a Deus e durmo com um retrato mental daquelas horas, o calor ainda na minha pele.

Mas acho que, com o pequeno menino, o que acontece é diferente.

Trabalho diariamente no apartamento de sua mãe e ele sempre me pareceu um garoto normal. Ri quando se deve rir e chora quando se deve chorar. Pede doce e brinca de criar infernos quando o recusam. É bonito, rechonchudo, vulnerável.

Mas acho que com ele é diferente o poder de adorar o que se acabou de viver.

Naquele dia, fim da tarde, eu só esperava que voltassem do passeio, ele e a mãe, para poder descer ao ponto de ônibus. Quando entraram, vi que ele voou através da sala num grande estado de estímulo. A patroa comentou comigo:

— Acho que ele nunca se divertiu tanto.

Dava graça de ver o menino ofegante:

— Vou escrever no caderno, mamãe. Vou escrever no caderno tudo o que aconteceu.

Esquentei a comida para eles, um sorriso, recordando meu próprio filho, que tinha crescido e voltado para Aracaju. Pus os pratos na mesa e a patroa se levantou para chamar o filho, mas ele já vinha lá de dentro, desta vez lento, cabisbaixo.

— Mamãe — ele perguntou —, amanhã pode ser hoje de novo?

— Amanhã não vai dar, lindo. Mas semana que vem a gente pode ir outra vez.

Ele deu duas colheradas na janta, pensativo:

— Mas não vai ser hoje de novo — comentou.

— A gente pode se divertir do mesmo jeito.

Ele parou de comer e então arregalou os olhos com uma grande descoberta:

— Mamãe, a gente não devia ter voltado! A gente devia estar lá ainda!

A patroa riu de boca cheia:

— Não dá, lindo. Fica tarde e eles fecham.

Ela nem reparou que ele tinha soltado a colher e se recostado na cadeira.

— Como é que pode que nunca mais seja hoje de novo?

No dia seguinte, preparei seu leite cedo e fui chamá-lo para a escola. Quando entrei no quarto, vi que seus olhos já estavam abertos. Ele me viu, ergueu-se depressa e foi olhar pela janela cuja persiana eu estendia para deixar a luz entrar.

O quarto se iluminou fracamente, e o menino viu lá fora uma névoa que o abalou.

— Não tem sol. Não é o mesmo dia. Agora aquilo tudo é ontem.

De noite, na televisão, já em casa, vi que repetiam uma novela. Teve uma cena alegre e lembrei-me de quando a vira pela primeira vez. Era um casal de amantes fazendo as pazes depois de uma discussão na praia, o mar ao fundo. Então que eu entendi o menino. Na minha frente, bem ali na tela do aparelho, aquele mesmo dia alegre estava existindo de novo.



Comentários

  1. Salve, Paulo. Adorei este historema sobre, a meu ver, a desilusão da impermanência. Belíssima execução. Seu texto me parece sempre meticulosamente calculado para exigir atenção do leitor, e isso é precioso. Avante!

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