Seria um melindre insensato temer suas possíveis reações. Eu estava decidido.
Com o sábado livre, cheguei ao velório cedo, antes do caixão. A funcionária apareceu com uma papeleta na mão, estudou o mural de entrada e fixou, diante do número 4, o nome do defunto que eu aguardava.
Pouco depois ele chegou. O ataúde era carregado por servidores esbaforidos. Atrás deles surgiu o Fabiano, um dos filhos, meu amigo de infância.
— Lamento — me adiantei.
Ele agradeceu por minha presença e até sorriu. Perguntei sobre o menininho, seu irmão.
— Está vindo no primeiro voo.
O menininho ainda arrastava carro de bombeiro e juntava tralhas na época em que o Fabiano e eu estudávamos para o vestibular, debaixo do ventilador catracante. Agora bacharelado, laureado e desempregado, eu o vi recentemente em talk-show na TV, desfiando suas conquistas digitais.
Estava rico.
As pessoas iam chegando, consegui me encaixar em duas ou três conversas. Peguei bolinho, café, visitei o morto em exposição uma vez, depois de novo, e estava encostado num poste da calçada quando o menininho, agora com músculos e a face escura por pelos, bateu a porta do táxi e caminhou com energia para a entrada do velório.
Não me aproximei naquele momento. Ele olhou para o quadro de avisos antes de entrar. Detectei sua consternação quando verificou na listagem o registro inapelável do nome do pai.
Minutos depois ele saiu depressa lá de dentro, óculos negros no rosto. Uma prima se aproximou para abraçá-lo, mas ele fez que não a viu e, para nossa surpresa, virou a esquina escapando por uma transversal como se não tivesse nenhuma relação com aquele ajuntamento de cidadãos pesarosos.
Cismei por quase uma hora na mesma posição, chegando a pensar que o menino não voltaria mais. Porém ele ressurgiu do mesmo ponto em que havia desaparecido e em seguida o féretro partiu.
Apreciei o trabalho do coveiro com certa gravidade, como quem olha um aquário e não pensa em mais nada. A urna desceu, preencheu uma cavidade do jazigo, o homem cimentou os tijolos e era isso.
Avistei depois o menino sentado profanamente numa campa mais adiante. Não havia ninguém por perto e eu me aproximei devagar. Minha mãe estava doente e era preciso ser prático. Sentei-me ao lado dele e lhe passei meu cartão, pedindo que me indicasse para um trabalho.
Ele levantou a armação sobre o nariz por somente um segundo para ler melhor, e eu notei as mais fundas olheiras vermelhas que já havia visto. Em seguida ele balançou a cabeça e se lembrou de mim. Falou detalhadamente as providências que tomaria a meu favor. Enumerou certas qualificações necessárias e até me fez perguntas. Guardou meu cartão no bolso e se despediu com um aperto de mão. Saiu do cemitério abraçado à mãe.
Não sei se ele se esqueceu ou se cultivou por um tempo algum aborrecimento comigo. Mas, como dizem, antes tarde do que nunca. Um mês depois eu estava empregado.
Comentários
Postar um comentário