Ao começar a falar com Henrique, percebi algo estranho e assustador.
Ando muito pela cidade e gosto quando encontro um amigo. Tenho centenas de amigos, talvez milhares: faz tempo que impugnei o status de “conhecido”. Aprecio a beleza de cada alma e amo pessoas cujo nome ignoro. Quem quer que cruze meu caminho pela calçada, eu detenho para ofertar sorrisos e trocar recordações.
Alguns de início fingem não me ver. Chego a notar os passos se acelerarem e os olhos se arregalarem voltados para o horizonte. Nunca levo a mal. Existe a pressa, a timidez, o receio de não lembrarem meu nome.
Mas seguro todos, sempre. Para os tímidos, sorrio como uma declaração de sua grande importância. Condescendo com os apressados, apertando suas mãos e me despedindo com desculpas por minha própria urgência. E liberto do embaraço os esquecidos, fingindo que minha memória é ainda pior:
— Qual seu nome, mesmo?
Às vezes a maldade do acaso me nega tais encontros por períodos muito longos. Por isso os crio eu mesmo, como hoje à tarde. Um carrinho bem pequeno e antiquado de sorvete passou pela esquina e me fez lembrar de Henrique. Era um vizinho do bairro, lá na infância, caçula do sorveteiro, invejado ocultamente por ter picolés de graça quando o pai descia a rua debaixo do sol bem forte.
A cabeleira desgrenhada de garoto transformou-se numa calva precoce, no Henrique de minha invenção. Ele estava também bastante obeso. Eu o vi primeiro, mas ele me reconheceu na hora e veio para perto cumprimentando bonachão:
— Mas olha quem diria! — ele poderia ter dito.
Minha simpatia emperrou momentaneamente porque, além das alterações físicas, pude detectar, em seus olhos recriados, uma ausência da alegria peralta que era uma marca de suas maquinações de moleque. Disfarcei essa percepção, trocamos alôs, e consegui imaginar que lhe diria:
— Você se lembra de quando a gente era criança?
Ele tinha que se lembrar. Todo mundo se lembra. Mas seus lábios se curvaram complacentes e ele só falou de meteorologia. Que ontem choveu muito, de repente, e ele se molhou tirando as roupas do varal.
— Não me casei — seria sua conclusão, como se devesse se explicar.
Era uma situação incômoda. Mas eu podia voltar atrás para ajudá-lo.
E voltei. Agora ele chegou com muito mais brilho, me viu, me cumprimentou primeiro, perguntou do meu passado, do meu presente e ainda me ofereceu uma casquinha de sorvete. Estava sóbrio e agitado. Era uma pessoa claramente feliz.
Continuei andando, cortei o caminho por uma praça. Tentei esquecer tudo depressa, solucionar contas mentais ou focar em outros pontos do cenário. Estava difícil tirar da cabeça a imaginação original, a verdadeira.
O novo Henrique, todo magro e alegre, não tinha me convencido. Foi ficando para trás, numa nuvem de enganos e ardis.
Acabei até tendo um pouco de pena dele.
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